Canudos: a cidade do fim do mundo.
O trovão soa na colina não muito distante do sítio, e Julio Redondo (camisa suja de terra, facão pendurado no cinto) levanta a cabeça espantado dentro de casa. Diz só uma palavra:
– Chuva.
Fala com emoção e alívio. Com a entonação feliz de quem espera há muito por alguém que enfim aparece.
Yamilson Mendes, um guia turístico de 35 anos (boné de ciclista, óculos de sol, bermuda), olha para o velho pastor de 85, é contagiado com seu otimismo e acrescenta duas palavras para confirmar a boa notícia:
– Chuva, sim.
A cidade de Canudos fica no interior vazio do Nordeste do Brasil, no meio desta região arisca e dura, o sertão, de uma vegetação única e singularmente bonita, a caatinga, que aguenta por 11 meses a mordida de um sol incandescente. Mas Canudos é famosa por outra coisa: em 1896, um batalhão de milhares de camponeses miseráveis, assolados por esta mesma seca, ajudados por grupos de bandoleiros e capatazes bravos de gado acostumados a lutar e a matar, ergueram-se em armas e enfrentaram a jovem república brasileira de então nesta cidade fora de todos os mapas. Liderados por Antônio Conselheiro, para alguns um fanático paranoico e retrógrado, para outros um santo milagreiro iluminado pela graça divina. O Conselheiro peregrinou durante anos por estradinhas sob esse mesmo sol torturante, de povoado em povoado, consertando igrejas e muros de cemitérios, antes de se negar a obedecer a qualquer autoridade, proibir o dinheiro, fundar a nova Canudos e arrastar para a morte a maioria de seus seguidores, que acreditaram cegamente nele até o último dia. Canudos rechaçou inacreditavelmente três expedições militares e só sucumbiu em outubro de 1897 à quarta, composta por um exército de mais de 4.000 homens, com canhões e metralhadoras, vindos de todos os Estados do Brasil. Tudo isso é contado num português primoroso por Euclides da Cunha, que viajou com essa quarta expedição, em Os Sertões, obra essencial da literatura brasileira. E é narrado magistralmente por Mario Vargas Llosa em A Guerra do Fim do Mundo.
Também o recordam, por meio das histórias de seus avós, os descendentes dos poucos que conseguiram fugir antes que o último cerco militar atingisse a cidade ou que sobreviveram à última batalha. Muitos deles – não todos – continuam a idolatrar o Conselheiro, como fizeram seus tataravós há mais de um século, transformando o tempo e a modernidade numa miragem.
“Meu tio, Chiquinho, lutou ao lado de Antônio Conselheiro. Quando eu era criança, enquanto balançávamos na rede, me cantava canções da Canudos velha, do tempo dos soldados. Eu lhe perguntava: ‘Matou muitos com o facão?’. E ele me respondia: ‘Uns poucos’. Mas não sei se era verdade. E me falava do Conselheiro, de como era bom, que fazia milagres e penitências, que as pessoas estavam contentes ao seu lado”. Maria Antônia Butão, Dona Maria, agora tem 77 anos e olha também, com um sorriso ausente, as nuvens que redemoinham em volta da sua casa nesta tarde estranha de vento e chuva. Vive numa chácara minúscula com cabras e um poço quase seco muito perto do campo de batalha de Canudos, das primeiras trincheiras, onde não é raro até hoje encontrar pentes de balas, botões de fardas e até esqueletos de soldados. Ao redor da casa se estende o mato baixo, salpicado de cactos como arame e de árvores peladas, cinzentas e esqueléticas da caatinga. Olhando para as nuvens também, sentado no chão, apoiado na parede da casa, há um homem de 45 anos. É filho de Dona Maria. Uma paralisia lhe vem inutilizando aos poucos as pernas há anos, sem que nenhum médico da região atine com a doença. Simplesmente as coisas são assim. Agora se arrasta ou a mãe o leva num piscar de olhos de fora para dentro da casa, de dentro para fora. Da velha Canudos não resta nada. Foi reduzida a cinzas depois da guerra. Os sobreviventes – os avós de Dona Maria, de Dona Durú e outros tantos – regressaram meses depois e ergueram uma nova cidade sobre os alicerces da anterior. Mas no início dos anos 50 o Governo brasileiro construiu uma represa que a cobriu por inteiro. A nova Canudos foi edificada de novo, a vários quilômetros de distância, à margem do lago. Hoje é uma cidade de mais de 15.000 habitantes, com casas de alvenaria habitadas por pessoas amáveis, com uma avenida asfaltada, uma feira às sextas, uma minipraia com quiosque, ruas de terra e um banco sem dinheiro depois que os encarregados, fartos, decidiram retirar os fundos há um ano e meio, depois de sofrer quatro ataques quase seguidos de quadrilhas de ladrões vindas de fora. Yamilson Mendes, o guia turístico, bisneto de uma sobrevivente da guerra, está convencido de que o Governo construiu a represa sem pedir permissão à população para, entre outras coisas, afundar a cidade velha e sua memória nas águas do lago. “Nem o fogo nem a água conseguiram apagar nossa história. Minha bisavó, que visitou o cemitério pouco antes de ficar submerso para sempre, dizia que seus mortos iam morrer duas vezes.”O fotógrafo fica com Dona Maria para a foto um pouco mais tarde. Enquanto isso, ela sugere, seria bom falar com uma amiga sua do povoado: Dona Durú. De 81 anos, Júlia Maria dos Santos, Dona Durú, foi professora leiga (sem diploma) durante metade da vida, ensinando as crianças e ler e escrever. Seu avô paterno também conheceu Antônio Conselheiro. E o pai desse avô. E duas bisavós. Ela se lembra bem das histórias da família: “Um dia, meu avô e meu bisavô saíram de Canudos para conseguir comida. Mas quando tentaram voltar a entrar, o cerco tinha se completado. Minhas bisavós ficaram dentro. E quando tudo acabou, os soldados as levaram para a Bahia. Uma puseram para cuidar dos filhos de uns senhores. A outra, para trabalhar no jardim. Mas poucos meses depois lhes perguntaram se queriam voltar para Canudos, mesmo estando destruída e queimada. Responderam que sim, porque sabiam que seus maridos estavam por aqui. E os encontraram.” Dona Durú se levanta para buscar numa cômoda uma foto de sua bisavó. Reclama. Não pode ficar de pé muito tempo. O vírus chikungunya, um dos transmitidos pelo mosquito responsável também pela zika e pela dengue, rói-lhe faz tempo as articulações dos joelhos. “Estas pernas já estão gastas”, resume. Depois acrescenta: “Ali, em Canudos, com o Conselheiro, a vida era boa, tudo era união, todo mundo era feliz, não havia brigas, não havia prostituição”. Dona Durú reproduz em 2017 em uma frase apenas o mesmo relato idealizado do paraíso já feito com estupefação por Euclides da Cunha em seu tempo, descrito por Vargas Llosa em seu romance; a mesma ideia quase mística que levou tantas pessoas dos quatro cantos do sertão a se encerrar em Canudos para defender o Conselheiro e seu mundo.
“Nem o fogo nem a água conseguiram apagar nossa história. Minha bisavó, que visitou o cemitério pouco antes de ficar submerso para sempre, dizia que seus mortos iam morrer duas vezes”
Mas a represa trouxe água abundante o ano inteiro para uma parte da população. Só uma parte: vários milhares de pessoas, como Dona Maria e Julio Redondo, o pastor de cabras, vivem em chácaras isoladas que dependem de poços artesanais quase sempre agônicos e, desde que foi instaurado o sistema no Governo Lula, dos carros-pipa mantidos pelo Exército, que passam uma vez por mês e que, apesar de tudo, são insuficientes. Também veio com a represa –junto com a estrada que chegou há uma dezena de anos – uma plantação rentável e organizada de bananeiras, que constitui a principal fonte de riqueza da comarca, junto com a tradicional venda de carne de cabra. Há pizzarias no centro da cidade. Mas há também mulheres que gastam o domingo de manhã caminhando pelo acostamento da estrada por vários quilômetros para recolher (e carregar na cabeça na volta) as mangas maduras que caem na área das bananeiras e são necessárias em casa.
Yamilson, o guia, leitor de Vargas Llosa, não se convence totalmente sobre a localização da represa. Nesta tarde, enquanto chove, contempla o lago – e imagina a cidade submersa nele – de um mirante situado numa colina na periferia da cidade, perto de uma grande estátua do Conselheiro erguida há anos e com vista para todo o vale. Não é a única homenagem nesta terra ao personagem que Euclides da Cunha, entre muitos outros, tachou de lunático. O homem que no Rio e na Bahia foi injuriado e descrito como um inimigo declarado do Brasil é enaltecido na terra em que morreu. A guerra de Canudos é resumida muitas vezes como o confronto entre a religiosidade cega em busca de milagres, personificada por este santarrão, de quem vivia com a desgraça nas costas e os que quiseram impor o progresso e a racionalidade do novo século à base dos tiros de canhão.
Na área há escolas batizadas com o nome de Antônio Conselheiro. E romarias anuais realizadas em sua memória. No museu local dedicado à guerra de Canudos existe outra estátua dele, e a seu pé há uma placa que lista e chama de heróis os principais defensores da cidade frente ao Exército regular da República, incluindo os bandoleiros e criminosos que decidiram pôr suas armas e sua destreza assassina a serviço de seu caudilho, louco ou não. Não muito longe dali, uma antiga capela conserva o crucifixo restaurado de madeira, de mais de três metros de altura, que o Conselheiro mandou erguer em 1896 e que até a tomada da cidade esteve na frente da principal igreja de Canudos. Ao lado da cruz alguém deixou pés esculpidos na madeira: o ex-voto de uma promessa cumprida por um santo a que esse alguém pediu que lhe curasse uma doença na perna.
Em outra chácara afastada, Solange, a rezadeira, de 75 anos, se dedica a aliviar no jardim os males de seus pacientes à base de calma, orações e toques das mãos. Nesta tarde atende a uma mulher de cerca de 30 anos cujos olhos doem. Num quarto guarda as estatuetas dos santos católicos herdadas de sua mãe e de sua avó, também rezadeiras. Num armário com chave do dormitório coleciona duas centenas de livros sobre espiritismo.
Bastará, como na previsão de Dona Maria, que siga caindo esta chuva que todos comentam nesta tarde para que tudo reverdeje, para que a natureza escondida exploda.
– Canudos é triste e há por aqui muitas pessoas mortas atuando. Às vezes incomodam, mas é preciso saber tratar com elas. Eu poderia ser milionária, mas não sou materialista. Gosto de viver aqui, mas se um dia me disserem para ir embora, irei, sem olhar para trás, como a tartaruga.
Depois, como tantas outras pessoas desta cidade, especialmente mulheres, conta a desgraça que a aflige:
– Não sei por que meu filho se suicidou. Por que foi para São Paulo e se matou lá. Ainda me pergunto.
Dona Maria se aprontou para sua foto. Prevê, enquanto sorri, que se chover um pouco mais em poucos dias o deserto imenso avistado da colina de sua casa florescerá. A selva baixa e metalizada, os galhos espinhentos dos arbustos e as árvores anãs que compõem a caatinga parecem mortos, torrados por um sol de mais de 300 dias. Mas chegando perto e partindo um ramo qualquer se descobre que estão só dormindo. Pode servir como metáfora desta terra e desta gente. Bastará, como na previsão de Dona Maria, que siga caindo esta chuva que todos comentam nesta tarde para que tudo reverdeje, para que a natureza escondida exploda
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Fonte; El País
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