Genocídio armênio faz 100 anos; veja pontos-chave da matança.
Em 1915, o Governo otomano ordenou a deportação dos armênios, uma comunidade cristã, para os desertos da Síria. Na perseguição que se seguiu, quase um milhão de pessoas morreram.
Na manhã desta sexta-feira, 100 anos depois do início do genocídio, umas 500 pessoas se reuniram em frente ao Museu de Arte Islâmica de Istambul, na Turquia, com flores e retratos das vítimas armênias. Este edifício, situado no centro do distrito turístico de Sultanahmet, tinha uma função muito mais sinistra naquela época: nele foram presos 250 intelectuais e líderes da comunidade armênia de Istambul, antes de ser enviados a prisões do interior de Anatólia (território que corresponde a dois terços da parte asiática da Turquia moderna, e onde está situada a capital Ancara), onde a maioria foi assassinada. Com este ato, se iniciou um período de deportações, massacres e perseguições que terminou com a vida de um milhão de armênios e fez com que a comunidade cristã do atual território da Turquia praticamente desaparecesse.
Apesar de que o Governo turco se nega a caracterizar estes fatos como genocídio, o ato em frente ao museu exigiu o "reconhecimento do genocídio, pedido de perdão oficial e reparação às vítimas". "Somos os netos de seus responsáveis e, enquanto nos permanecemos calados, continuamos a ser cúmplices", afirmou Eren Keskin, advogada e vice-presidenta da Associação de Direitos Humanos da Turquia, uma das organizadoras do protesto no qual estiveram presentes grupos da diáspora armênia, descendentes dos deportados, armênios que chegaram da França, Estados Unidos ou Armênia, sobreviventes de outros genocídios como o de Ruanda e do Holocausto judeu, além de grupos antirracistas europeus.
Estava previsto que milhares de armênios e turcos se concentrem na praça de Taksim de Istambul esta tarde para, juntos, recordar as vítimas do Mets Yeghern, ou Grande Calamidade, como se denomina em armênio este período.
Estes são os pontos-chave de um genocídio que há 100 anos se iniciava.
O contexto. Um império em decadência
No começo do século XX, entre 1,5 e dois milhões de armênios viviam no Império Otomano, e alguns membros desta comunidade se ocupavam respeitáveis posições na Administração —houve inclusive ministros armênios—, nos negócios financeiros ou como arquitetos da corte do sultão, pois eram conhecidos por sua fama de hábeis artesãos (a indústria global de pratos de bateria tem origem nos armênios de Istambul).
A situação econômica também era catastrófica. O Estado Otomano era constantemente obrigado a fazer concessões aos seus credores: as mesmas potências europeias que o derrotavam no campo de batalha. Nas províncias da Anatólia Oriental, os armênios eram submetidos à constante pilhagem por parte das tribos curdas e ao maltrato das autoridades otomanas. Surgiram então várias organizações, como a Federação Revolucionária Armênia (Dashnak) e o Partido Hunchak, que buscavam uma insurreição geral e a intervenção das potências em seu auxílio, em especial da Rússia. A repressão das autoridades otomanas foi brutal e milhares de armênios foram massacrados nospogroms de 1891-1896 e 1909.
Como ocorreram as deportações? As marchas da morte
A participação otomana na Primeira Guerra Mundial começou com uma sonora derrota contra os russos no Cáucaso. Apesar de a razão principal ter sido a desastrosa estratégia dos líderes otomanos, o Governo, liderado por um triunvirato de nacionalistas turcos —Enver, Talat e Cemal—, atribuiu o fracasso ao suposto apoio da população local armênia às tropas do Czar. Ao mesmo tempo, ocorreram insurreições dos partidos revolucionários armênios nas localidades de Zeitun e Van, o que foi utilizado pelas autoridades para tachar toda a população armênia de traidora.
No dia 24 de abril de 1915, cerca de 250 intelectuais e líderes armênios de Istambul foram detidos e deportados para Ancara, onde seriam executados. Era o início de um plano de limpeza étnica que ficaria estampado na Lei de Transferência e Reassentamento, aprovada em 27 de maio.
Com exceção de Istambul e Esmirna, além de algumas cidades menores que se livrariam das deportações por intercessão das autoridade otomanas, o mesmo método foi seguido em praticamente todos os lugares: primeiro os armênios foram obrigados a entregar suas armas —os soldados armênios do Exército otomano foram deslocados para batalhões de trabalho—, depois as figuras mais importantes foram presas e assassinadas; e posteriormente foi anunciado que os armênios seriam deportados. Antes do início da marcha, os homens idosos eram separados das mulheres e crianças e, na maioria dos casos, executados.
A rota, através da estepe da Anatólia e com destino aos desertos da Síria, se transformou em verdadeiras marchas da morte. Quase sem acesso à comida ou água, dizimados pelas doenças, milhares de armênios morreram pelo caminho. As filas de deportados eram constantemente submetidas ao assédio da polícia ou aos ataques de grupos criminosos de curdos, turcomenos e circassianos que, além de roubarem seus pertences, raptavam as jovens para estuprá-las ou levá-las como esposas. O sofrimento era tanto que muitas mulheres se suicidaram, pulando com seus filhos nos rios ou de precipícios.
Aqueles que conseguiam chegar até Urfa, Aleppo ou Deir ez-Zor eram praticamente mortos-vivos: “Vimos muitos armênios que haviam chegado antes de nós e que se tornaram esqueletos”, conta um dos deportados entrevistados no livro Survivors, de Donald E. Miller e Lorna Touryan. “Éramos rodeados por tantos esqueletos, que parecia que estávamos no inferno. Todos tinham fome e sede e buscavam rostos conhecidos que os ajudasse. Nos sentíamos terrivelmente sem esperança”.
Quantos armênios morreram? A guerra dos números
A cifra de vítimas e deportados continua sendo motivo de polêmica, já que ambas as partes ocultam ou utilizam os documentos da época para os próprios interesses.
De acordo com as autoridades da Armênia, 1,5 milhão de armênios morreram no genocídio, enquanto os nacionalistas turcos mais radicais reduzem esse número para menos de 300.000.
Segundo os documentos do ministro do Interior otomano, Talat Pasha, publicados há sete anos, cerca de um milhão de armênios foram deportados, cifra semelhante à oferecida na época pelas missões militares dos Estados Unidos (1,1 milhão) e da Grã-Bretanha (1,2 milhão), ou pelos números fornecidos pela delegação armênia à Conferência de Paz de Paris de 1919 (700.000).
Em 1916, Arnold J. Toynbee, um historiador britânico encarregado por seu país de documentar os massacres de armênios, falava em 600.000 mortos, alguns sobreviventes das deportações —parte deles morria posteriormente devido a doenças ou ataques— e mais de meio milhão que teriam escapado das deportações, alguns deles convertendo-se ao islã. O embaixador norte-americano em Istambul durante a guerra, Henry Morgenthau, tinha dados semelhantes, citando entre 600.000 e um milhão de mortos. O próprio Ministério do Interior Otomano tinha, em 1919, uma estimativa de 800.000 armênios mortos.
O que aconteceu com os responsáveis? Operação Vingança
Os Estados vencedores da Primeira Guerra Mundial forçaram o Império Otomano a julgar, ainda que in absentia, os responsáveis das deportações de armênios, mas a falta de uma legislação penal internacional apropriada e o início da Guerra de Libertação Turca (1919-1922), que expulsou as forças aliadas da Anatólia e pôs fim ao Império Otomano, fizeram com que as potências se desentendessem sobre os julgamentos.
Em um congresso da Federação Revolucionária Armênia (Dashnak), de 1919, ficou decidido que, devido a falta de punição dos responsáveis —a maioria deles havia fugido do Império Otomano—, era preciso fazer justiça com as próprias mãos. O exilado armênio Shahan Natalie, cuja família havia sido assassinada nos massacres otomanos no fim do século XIX, ficou encarregado de planejar a operação de vingança, batizada de Nêmesis, em homenagem à deusa grega da justiça e da vingança. Num intervalo de três anos, os principais responsáveis políticos pela penúria dos armênios foram sendo mortos por pistoleiros armênios, como o ministro do Interior Talat Pacha, em Berlim; o Grão-Vizir Said Halim, em Roma; e o governador da Síria, Cemal Pacha, em Tbilisi. Enver Pacha, outro responsável, morreu lutando contra os soviéticos na Ásia Central.
Décadas mais tarde, um grupo de descendentes de sobreviventes armênios fundou o Exército Secreto para a Libertação da Armênia (ASALA), organização armada cujo objetivo era forçar o Governo turco a reconhecer o genocídio armênio, pagar indenizações às suas vítimas e ceder parte de seu território a uma Grande Armênia. O ASALA atuou entre 1975 e 1991, assassinando 46 pessoas —em sua maioria diplomatas turcos— e cometendo atentados contra civis nos aeroportos de Ancara e Paris-Orly. Em 1975, os militantes armênios atacaram o veículo da embaixada turca na Espanha, matando três pessoas; em 1979, colocaram bombas na sede madrilenha de duas companhias aéreas.
O que aconteceu com os sobreviventes? A diáspora
No fim da Primeira Guerra Mundial, foi lançada uma campanha de ajuda internacional aos sobreviventes das deportações, e nos anos seguintes muitos foram enviados à Europa e à América. Alguns permaneceram nos territórios que hoje formam a Síria e o Líbano, e aqueles que viviam no leste da Anatólia escaparam da recém-criada Armênia soviética. Atualmente, cerca de cinco milhões de armênios vivem espalhados pelo mundo, fora das fronteiras da República da Armênia, principalmente na Rússia, Estados Unidos e França. Entre os representantes mais famosos da diáspora estão o músico francês Charles Aznavour, a cantora norte-americana Cher, os integrantes da banda System of a Down, a modelo Kim Kardashian e o empresário Kirk Kerkorian, um dos pais de Las Vegas.
Kerkorian e outros integrantes ricos da diáspora têm sido um dos pilares econômicos da paupérrima República da Armênia (três milhões de habitantes), através de suas doações e projetos de cooperação. Em geral, mantêm uma postura de forte confronto com a Turquia.
As implicações internacionais
Até o momento, 23 países reconheceram as matanças sofridas pelos armênios como genocídio, entre eles a Rússia e a metade dos paísesda União Europeia. Na América Latina, os Parlamentos do Uruguai, Argentina, Venezuela, Chile e Bolívia fizeram o mesmo, enquanto na Espanha apenas os Parlamentos dos governos regionais de Euskadi, Baleares, Navarra e Catalunha reconheceram o fato.
Outros quatro países —Grécia, Chipre, Eslováquia e Suíça— proibiram a negação do genocídio sob pena de prisão ou multas, algo que a França tentou imitar em 2012, mas a lei foi derrubada pelo Tribunal Constitucional.
Frequentemente, enviados armênios pressionam os EUA para que a Casa Branca siga o caminho de 44 de seus estados, que já reconheceram o genocídio. Mas, por enquanto, isso não aconteceu, já que Washington não deseja se indispor com um aliado estratégico como a Turquia.
A falta de reconhecimento do genocídio por parte de Ancara é uma das questões que envenenam as relações entre a Turquia e a Armênia, cujas fronteiras permanecem fechadas. Embora seja verdade que essa falta de entendimento desempenhe um papel ainda mais crucial no conflito de Nagorno-Karabakh, um território que pertence legalmente ao Azerbaijão —aliado turco—, e que desde a guerra de 1992-1994 está ocupado pela Armênia.
Fonte: El País Brasil.
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