Quais os desafios da esquerda egípcia depois da destituição de Mursi?
“Grande vitória para a esquerda!”. A avaliação sobre a destituição de Mohamed Mursi é unanimidade entre ativistas egípcios que destacam o caráter reacionário do presidente da Irmandade Muçulmana e a importância da mobilização de mais de 30 milhões de pessoas. Entre clamores sobre a “democracia real”, que viria das ruas e não das urnas, militantes e analistas vinculados a setores de esquerda vislumbram, no entanto, um cenário de grandes dificuldades pela frente.
Novas eleições parlamentares e presidencial, redação de uma nova Constituição, conquistar justiça social e direitos trabalhistas, democratizar as instituições e manter a população mobilizada são apenas alguns dos desafios que os ativistas egípcios têm de enfrentar nesse novo momento político. Se a saída de Mursi foi positiva por abrir novos horizontes e possibilidades para a esquerda, também acendeu caminhos para grupos da direita. De organizações vinculadas ao antigo regime de Hosni Mubarak à organização salafista, muitos estão na disputa pelo vazio de poder deixado com a destituição do presidente.
Agência Efe
Seguidores de Mohamed Mursi protestam no Egito para pedir pela sua volta
“É uma situação ambígua”, define o autor do livro “The People Want”, Gilbert Achcar. “Por um lado, a esquerda apenas pode ganhar com a queda da Irmandade Muçulmana, porque competem com a organização religiosa por apoio popular”. Por outro lado, o analista acrescenta outros grupos reacionários, do qual destaca as Forças Armadas, que parecem se beneficiar com a situação.
“Quando existe unanimidade da nação contra o regime, não existe unanimidade pelo alternativo”, afirma o economista marxista egípcio, Samir Amin. “O que vemos hoje no Egito é um grande espectro de classes sociais, interesses políticos, visões ideológicas”, conclui ele. Na análise de Mamdouh Habashi, fundador do recente Partido Socialista do Egito, não são membros da esquerda que estão liderando o processo revolucionário – basta olhar para a composição do gabinete de transição.
Minoria mobilizada
De grupos jovens a partidos tradicionais, de ideais socialistas aos comunistas e de organizações formadas depois dos protestos contra Hosni Mubarak às mais antigas, a esquerda no país é composta por diferentes vertentes com importante repercussão entre sindicatos, intelectuais, artistas e estudantes. Entre os grupos de maior destaque no cenário atual estão aqueles que seguem a corrente nacionalista de esquerda fundada pelo ex-líder egípcio Gamal Nasser, como o Tamarrod (rebelde na tradução em português), que coletou mais de 20 milhões de assinaturas contra Mursi, e o movimento Corrente Popular, liderado por Hamdeem Sabahi, terceiro colocado na eleição presidencial de 2012. Figuras de Nasser se tornaram cada vez mais comum nas mãos de manifestantes desde o protesto do dia 30 de junho contra o presidente da Irmandade Muçulmana.
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Hamdeem Sabahi, terceiro colocado nas últimas eleições presidenciais no Egito
“Um mês antes do protesto do dia 30 de junho, eu havia dito a companheiros que os cinco milhões que votaram por Sabahi são minoria, mas os únicos capazes de mobilizar”, avalia Amin. “Os mais de dez milhões que escolheram Mursi votaram porque estavam recebendo um quilo de arroz, de açúcar, de sal – o que, na crise econômica de hoje, é um banquete!”, conclui ele.
Os anos de 2012 e 2013 foram recordes em mobilizações no Egito: segundo dados do Centro de Direitos Econômicos e Sociais, apenas no ano passado, aconteceram 581 protestos, 514 greves e 500 ações diretas pacíficas. O protesto do dia 30 de junho contra Mursi, que reuniu mais de 30 milhões segundo estimativas oficiais, “foi maior do que qualquer dia da primeira revolução”, lembra a jornalista e ativista do partido Socialistas Revolucionários, Gigi Ibrahim, que teve papel ativo nas manifestações contra Mubarak.
“O problema é que muito do crédito pelas mobilizações foi roubado pelas Forças Armadas no sentido que os militares são os principais beneficiados com a destituição de Mursi e nos olhos da opinião pública”, analisa Achcar, lembrando que a popularidade do Exército cresceu. “E a esquerda, ou ao menos, boa parte da esquerda egípcia, está compartilhando ilusões sobre as Forças Armadas serem amigos do povo. Isso é extremamente perigoso”, conclui.
Como a esquerda perdeu o bonde
Mursi, primeiro presidente egípcio eleito depois dos protestos da Primavera Árabe, foi destituído pelas Forças Armadas no dia 3 de julho depois de uma grande mobilização nas ruas em um processo muito semelhante ao que retirou Mubarak do poder em fevereiro de 2011. “Os militares eram a única força capaz de retirar o presidente da Irmandade Muçulmana”, explica Ibrahim em coro a tantos outros ativistas, incluindo os membros do Tamarrod.
Na visão do analista Esam Al Amin, autor do livro “The Arab Awakening Unveiled: Understanding Transformations and Revolutions in the Middle East”, grupos vinculados ao antigo regime de Mubarak também estão se beneficiando com a saída do presidente da Irmandade Muçulmana. “Talvez o erro mais sério cometido pelos grupos revolucionários tenha sido o de subestimar os perigos dos ‘fulool’ que continuam em controle do aparato de segurança, da maioria da mídia privada, do judiciário, como também de indústrias e instituições econômicas influentes”, escreveu ele em artigo no site Counterpunch.
“O principal problema no processo de destituição de Mubarak, em janeiro e fevereiro de 2011, foi que as forças revolucionárias não tinham a organização necessária para tomar o poder. E as duas forças no país que tinham esse poder eram a Irmandade Muçumana e as Forças Armadas, que dividiram o poder”, analisa Habashi. “Nessa segunda onda revolucionária, é quase o mesmo”, conclui.
Novas condições, novos problemas
Apesar de ter perdido espaço no processo de transição para setores liberais e de direita, os analistas consultados por Opera Mundi ainda vislumbram um campo de sucesso para os grupos de esquerda.
Na visão de Habashi e Amin, companheiros de organização no Egito, existem melhores condições de luta com o gabinete de transição que assumiu o poder. Mais respeito ao direito a se organizar e manifestar, liberdade de expressão, entre outros avanços, foram listados pelos militantes. Ibrahim, que pertence a outro partido, concorda que o momento é positivo: “podemos construir uma constituição sólida com leis eleitorais corretas”.
“É um grande passo para as forças revolucionárias porque mudamos as condições, não porque temos, agora, um governo revolucionário”, conclui Habashi. “Essa é apenas mais uma onda da mesma revolução e nós vamos continuar lutando pela revolução”, concorda a ativista do partido Socialistas Revolucionários.
Em pouco tempo no poder, o gabinete de transição já tomou uma decisão de grande importância para a luta trabalhista. O presidente da Federação Egípcia de Sindicatos Independentes (EFITU na sigla em inglês), Kamal Abu Eita, foi nomeado ministro do Trabalho. “Isso significa que é alta a probabilidade da lei de liberdade sindical, que permite aos trabalhadores se organizarem independentemente do Estado, passar”, avalia Achcar. “Por outro lado, teremos que ver se esse homem vai colocar os interesses do sindicato acima do Ministério”, pontua.
Na análise de Achcar, a esquerda tem chances reais de vencer o próximo pleito presidencial desde que consiga construir uma identidade sólida. “Pense numa coisa: no primeiro turno da eleição de 2012, o candidato da esquerda, o nasserista Sabbahi, ficou em terceiro lugar sem ter nenhum recurso financeiro como Mursi e Ahmed Shafiq”, lembra ele a Opera Mundi.
Segundo o professor, o contexto socioeconômico é muito favorável para um candidato com programa progressista, com foco na justiça social e em uma resolução da crise econômica que fuja dos preceitos neoliberais. Como argumenta em seu novo livro, tanto Mubarak quanto Mursi caíram porque não conseguiram resolver o problema da grande maioria dos egípcios: a pobreza e o desemprego cresceram, os preços e a inflação aumentaram e a vida está cada vez mais difícil.
“Por outro lado”, ressalva ele, “se a esquerda realizar alianças com liberais, membros do antigo regime e espalhar essas ilusões sobre os militares, não conseguirá pautar a política”. “Enquanto os verdadeiros problemas socioeconômicos não forem resolvidos e a insatisfação crescer, iremos assistir a novas ondas de polarização e radicalização no Egito”, conclui.
O que a América Latina tem a ensinar ao Egito
Caso o Egito eleja um presidente que rompa com os acordos do FMI e ofereça soluções progressistas à crise socioeconômica – nas palavras de Amin, “que realize um outro padrão de desenvolvimento econômico e social”. “Mursi era um presidente de direita e perdeu o apoio popular, isso é claro”, afirma o professor de política da SOAS. “Mas sabemos por experiência histórica que os militares podem intervir novamente contra um presidente de esquerda e com apoio popular real”, argumenta. Segundo Achcar, o golpe contra Salvador Allende em 1973 pelos militares chilenos é uma prova desse perigo.
Por esta razão, o professor aponta que, para avançar, a esquerda egípcia precisa enfrentar o seu principal problema: as Forças Armadas do país. “Os movimentos populares e de esquerda devem conquistar os soldados e não construir ilusões em relação aos oficiais de alta patente”, afirma ele a Opera Mundi. “Enquanto os militares não mudarem, será difícil assistirmos a uma vitória da esquerda”, conclui.
Agência Efe
A Irmandade Muçulmana promete continuar nas ruas até que Mursi seja devolvido ao poder
“A América Latina tem muitos exemplos recentes governos de esquerda bem sucedidos; os egípcios devem se atentar a isso”, aconselha.
Fonte: Opera Mundi.
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