Forças Armadas do Egito: salvadores da revolução ou inimigos do povo?
Quase dois meses depois da deposição de Mohamed Mursi, milhões de egípcios ainda saem às ruas para demonstrar apoio às Forças Armadas do país. Estimativas oficiais indicam a presença de cerca de dezenas de milhões de pessoas em alguns protestos, que carregam cartazes com fotos do general Abdel Fattah al Sisi, chefe da organização militar e responsável pela deposição de Mursi, presidente egípcio até o dia 3 de julho e líder da Irmandade Muçulmana. “Heróis nacionais”, “amigos do povo”, “salvadores da revolução” eram apenas alguns dos elogios escutados entre a multidão.
É inegável – pelo número de pessoas nas ruas – que as recentes ações das Forças Armadas do Egito contam com o respaldo de boa parte da população do país. Basta lembrar que os oficiais decidiram retirar Mursi do poder depois de uma das maiores marchas da história moderna, que reuniu ao menos 30 milhões contra o presidente, segundo as estimativas oficiais. O rápido retorno dos militares aos pedidos do povo contra Mursi lhes rendeu popularidade e confiança, possibilitando que pudessem caracteriza-los como os representantes da pátria.
Diferentemente de fevereiro de 2011, quando retiraram o também militar Hosni Mubarak da presidência, os oficiais passaram o governo de transição para as mãos de um comitê civil: o juiz Adly Mansour foi nomeado como presidente interino e o Nobel da Paz e líder opositor, Mohamed El Baradei, como vice-presidente. Alguns atribuem a mudança de posicionamento ao novo líder do Exército, general Sisi, que substituiu o marechal Hussein Tantawi no cargo, em agosto de 2012, depois de uma ordem de Mursi.
Agência Efe
Após Forças Armadas anunciarem saída de Mursi, dezenas de milhões de egípcios comemoraram nas ruas, em 03/07
Muitos analistas e ativistas de esquerda alertam, no entanto, que as Forças Armadas estão atuando apenas de acordo com os interesses da corporação. “Muitos egípcios esqueceram que, antes da eleição de Mursi, eles estavam lutando contra os militares, porque o SCAF (Conselho Supremo das Forças Armadas do Egito na silga em inglês) comandava o país de uma forma ditatorial”, afirma a Opera Mundi o professor de política da SOAS (Escole de Estudos Orientais e Africanos na sigla em inglês) e especialista em Oriente Médio, Gilbert Achcar.
O analista, que é também autor do livro “The People`s Want: A radical exploration of the Arab Uprising”, lembra que o Exército era a coluna vertebral do regime ditatorial derrubado na primeira onda revolucionária, no início de 2011. Representantes do povo ou amigos do antigo regime? Salvadores da revolução ou força reacionária? Afinal, qual a história por trás da organização que derrubou os dois últimos governos no Egito?
Casta militar, elite econômica
Como os recentes acontecimentos demonstraram, as Forças Armadas do Egito continuam sendo um ator central na dinâmica política do país. Os militares derrubaram a monarquia, em 1952, sob a liderança do general Gamal Abdel Nasser e, desde então, permaneceram como uma força decisória: foram eles que tomaram à frente dos protestos, em 2011 e 2013, tirando, respectivamente, Mubarak e Mursi.
Mas, entre as décadas que separam os tempos nasseristas dos dias atuais, o perfil da organização sofreu grandes mudanças. “O ponto de virada foi em 1970, quando Anwar Sadat assumiu o poder como sucessor de Nasser”, explica a Opera Mundi o economista marxista e membro do Partido Comunista do Egito, Samir Amin. “Sadat era um agente da CIA e sua primeira decisão foi acabar com o socialismo nasserista”, acrescenta ele, que trabalhou na administração de Nasser.
Ao abrir as portas do país para investimentos privados, Sadat foi responsável por reverter os rumos da política socioeconômica desenvolvida nos anos anteriores com Nasser, que nacionalizou os meios de produção e implementou serviços públicos universais. Sadat também mudou, completamente, a política externa do Egito, aproximando-se de Estados Unidos e Israel com os acordos de Camp David, em 1978.
Não menos profunda foi a modificação ocorrida nas Forças Armadas: se antes a ideologia dominante era o socialismo nacionalista, a partir dos tempos de Sadat, a corporação militar passou a assumir os interesses da elite. Atualmente, nas palavras do analista Jim Kanavagh, o Exército egípcio constitui uma “casta econômica e militar”.
Segundo dados divulgados pelo analista Esam Al Amin, as Forças Armadas do Egito controlam cerca de um terço da economia do país com envolvimento em diferentes setores, desde a produção de azeite à confecção de urnas eleitorais. As propriedades foram adquiridas durante o processo de privatização dos anos 90, sob a liderança de Mubarak, e por meio de uma rede de favorecimento aos oficiais de alta patente. Além disso, a corporação recebe uma “ajuda” dos EUA de 1,5 bilhões de dólares por ano.
“Seus milhares de oficiais de elite guardaram, zelosamente, seus postos privilegiados ao longo dos anos e enriqueceram por meio de contratos governamentais e negócios facilitados por suas posições”, escreve o jornalista Ben Hubber para o New York Times. “Eles formaram uma casta hereditária, na qual os filhos seguem a carreira de seus pais, e vivem em um circulo social fechado”, acrescenta ele.
Blindados da interferência civil em seus assuntos, a organização não passa por processos de auditorias nem divulga os números de seus cofres, tomando decisões sem o conhecimento público. Na avaliação de Al Amin, esta é uma situação que os militares estão determinados a manter com unhas e dentes. “Eles não querem políticos ou grupos interferindo em seus processos decisórios, sobretudo naquilo que se refere aos seus conglomerados financeiros e temas de segurança nacional”, escreveu o analista.
Defensores do livre comércio e das receitas neoliberais – nas palavras do ministro das Finanças do país-, as Forças Armadas não querem transformar o quadro social que sustenta o regime. “Os militares não são amigos do povo”, opina Achcar. “Eles têm seus próprios interesses como uma máquina; possuem vínculos estreitos com os EUA; eram a estrutura do antigo regime; e, neste sentido, o regime no Egito continua o mesmo”, alerta ele.
Por trás dos cargos, o verdadeiro poder
“Sisi, como chefe das Forças Armadas, foi muito esperto”, avalia Amin. “Ele sabia que se tivesse tomado uma posição diferente, teria perdido o apoio de oficiais de médio e baixo escalão dentro da corporação”, acrescenta ele em referência a deposição de Mursi. O economista, autor de diversos livros sobre o país, acredita que o general tomou a decisão certa, sob o prisma da organização, em escolher civis, de diretrizes conservadoras e liberais, para compor o governo de transição.
Achcar observa que os militares aprenderam as lições de quando, em vez de nomear um comitê civil para governar o país, permaneceram como o conselho administrativo depois de retirar Mubarak da presidência. Durante o período, a organização perdeu popularidade entre o povo egípcio, que acusou os militares de não resolverem os problemas sociais e políticos do país.
“Eles foram muito mais espertos, desta vez”, afirma a Opera Mundi o professor. “Eles não querem governar diretamente, porque sabem que a situação é extremamente difícil do ponto de vista econômico e social. Essa é a verdadeira razão da queda da Irmandade Muçulmana: eles não foram rejeitados por tantas pessoas por causa de questões culturais ou políticas, mas, sim, por falharam em aliviar e resolver o problema social”, acrescenta.
Os militares não têm um programa para solucionar a grave situação socioeconômica do país, porque são um dos beneficiadores das políticas neoliberais que levaram o Egito à crise. Mas, ao mesmo tempo, reconhecem que, se assumirem o poder, se tornarão inimigos das massas insatisfeitas com a pauperização.
“Apesar disso, eles serão o poder real, o único poder real no país”, avalia Achcar. “Nós veremos, rapidamente, neste conflito com a Irmandade Muçulmana, que as Forças Armadas são a coluna vertebral do regime e da ordem econômica do país”, conclui.
Os momentos de exceção revelam, de forma visível, a essência da autoridade do Estado. A definição do pensador Carl Schimitt indica que aqueles que tomarem as decisões, no estado de exceção, são os verdadeiros soberanos. No caso do Egito, fica claro que os verdadeiros soberanos permanecem sendo os militares, mesmo depois de tantas mobilizações e mudanças.
Fonte: Opera Mundi.
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